domingo, 28 de maio de 2017

Sem emenda - Quem deve teme

Nas vésperas da cimeira da NATO, em Bruxelas, o ministro português da defesa prestou declarações às televisões. Não terão sido esclarecimentos formais, em ocasião oficial, mas o tom é elucidativo. Confirmou o ministro, com um sorriso de boa fé, que era verdade que Portugal não cumpria os seus deveres para a segurança colectiva, nem sequer o compromisso mínimo estabelecido para a despesa com a defesa nacional que é de 2% do PIB. Mas disse também que era preciso considerar a nossa contribuição qualitativa! Esta última é um mistério. As ilhas atlânticas? O mar? As praias? Algo que seja só nosso e mais ninguém tenha? Ou um jeito português especial?

Dos 28 membros da NATO, apenas cinco cumprem: Estados Unidos, Grã-Bretanha, Polónia, Estónia e Grécia. Todos os outros ficam abaixo dos 2%. Como Portugal, com 1,3%. Menção especial para a França, com 1,7%, a Alemanha 1,2%, a Itália 1,1% e a Espanha 0.9%!

Infelizmente, Donald Trump tem razão. Diz ele que os Estados Unidos não estão dispostos a pagar pelos outros, sem que estes cumpram os seus compromissos. E ameaça os europeus. Não se sabe bem de quê, mas deve querer dizer coisa má. O problema é que, neste caso, está certo. Cada país membro da NATO tem de pagar pela sua defesa. A maior parte não paga os 2%. Preferem gastar com coisas mais agradáveis e entregar-se à protecção do poderio americano. A ideia é simples: tudo quanto ameaça a Europa ameaça também os americanos. Como estes são mais fortes e mais ricos, eles que se ocupem disso. E nem sequer a União tem uma política própria de defesa, muito menos uma capacidade autónoma.

Pode ainda recordar-se que, há quase vinte anos, a maioria dos partidos parlamentares (se bem me lembro, a única reserva foi do PCP…) acabou com o Serviço Militar Obrigatório. Sem mais. Sem qualquer espécie de ideia sobre o que poderia ser uma contrapartida civil ou de solidariedade. Na verdade, foi a boa demagogia da facilidade e as velhas juventudes partidárias que forçaram a decisão! Mas a ideia estava dada: não se gasta com a defesa, há coisas mais importantes. E de qualquer maneira, a NATO e os americanos estão aí para nos proteger.

Há actividades assim, em que alguém paga, alimenta ou mantém outrem! Eis uma relação que tem tradicionalmente um nome bem feio… E que se aplica às relações entre americanos e europeus na área da defesa.

Portugal não é um caso raro, nem pior do que os outros. Há mais de vinte países da NATO que não respeitam os compromissos nem cumprem as suas obrigações. Dependem dos Estados Unidos. Até ao dia em que Donald Trump lhes dirá: “Não pagam pela vossa segurança? Então deixaremos nós de pagar. Ou não garantimos a vossa liberdade. Ou então exigimos contrapartidas políticas!”. Nesse dia, toda a Europa, com excepção da Grã-Bretanha e pouco mais, se elevará contra a prepotência imperialista americana.

Esta atitude não está isolada. Faz lembrar a de tantos que entendem que os credores devem obedecer aos devedores e que aqueles a quem devemos dinheiro têm de fazer o que queremos e aceitar as nossas condições. Há quem faça disso um programa político: viver à custa dos outros! A defesa é paga pela América. As dívidas serão pagas pelos credores. Os investimentos pelos europeus. Os estrangeiros que paguem a nossa protecção. Devem também pagar os juros e as dívidas, assim como aceitar a renegociação e o perdão da dívida. E devem subsidiar o desenvolvimento. Há mesmo quem queira obrigar os estrangeiros a pagar pela educação em Portugal, dado que depois se aproveitam dos emigrantes portugueses, cuja formação foi paga pelo país. É tão conveniente ter o nosso patriotismo pago por outros! E a independência subsidiada!

            Os povos e os Estados têm o direito de não pagar a defesa, nem as Forças Armadas. Como têm o direito de pedir emprestado a fim de financiar os seus investimentos. Não têm é o direito de exigir que outros os defendam, que outros paguem os seus militares e que outros arrisquem a vida em sua defesa. Nem têm legitimidade para exigir que lhes paguem ou perdoem as dívidas. Em poucas palavras: não têm o direito de viver às custas dos outros, ao mesmo tempo que reclamam a independência e o direito a ser tratado como igual. Até porque não são iguais. Nem independentes.

DN, 28 de Maio de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Cruzeiro no cais do Terreiro do Paço – É um navio da empresa Costa, conhecida pelos muitos que tem, sempre com Costa no nome. Como Costa Favolosa ou Costa Luminosa. O mais famoso era seguramente, pelas más razões, o Costa Concordia, que virou de bordo e afundou. Este aqui, à beira do Campo das Cebolas, é o Costa Deliziosa! Dentro de pouco tempo, estes navios ficarão todos mais a nascente, no novo cais em construção. Por agora, quem vem da Ribeira das Naus, ao chegar à Praça do Comércio, depara-se com este espectáculo a fazer logo pensar no “Navio dentro da cidade”, do escritor grego André Kedros que escreveu aquele romance nos anos quarenta. Graças aos cruzeiros (além dos voos low cost, com certeza), Lisboa está hoje uma cidade diferente do que era ainda há bem pouco tempo. À beira destes navios (antigamente, dizia-se paquetes…), que chegam a transportar mais de 3 000 passageiros e 1 000 tripulantes, nasceram centenas de tuk-tuk, de roulottes com comes e bebes e vendas de artesanato.

DN, 28 de Maio de 2017

domingo, 21 de maio de 2017

Sem emenda - Súplica ao Senhor dos Aflitos

São dias fastos. O défice abaixo de 1,4%! E a baixar… O crescimento a 2,4%! E a subir… O Presidente Marcelo já fala de 3,2%... A sorrir… O desemprego a 10%! A diminuir… O consumo privado a subir. Muito pouco, mas a subir… A poupança a subir. Pouco, mas para cima. O investimento a dar sinais. Poucos, mas bons… Os fundos europeus a chegar. Muitos e a aumentar… O turismo a subir. Muitíssimo… As exportações a subir. Sempre… Só a dívida não mexe…

O presidente Marcelo, o Primeiro-ministro Costa e o governo têm feito tudo o que podem para aproveitar a oportunidade boa conselheira e o vento favorável. E têm conseguido. Com alguns proventos que herdaram do governo anterior. Com a paz social, obra e graça dos sindicatos. Com a benevolência dos empresários, cansados de apertos. Com o clima geral económico de feição. Com os auspícios da Europa e do Ocidente. Com uma inédita conjuntura turística que ainda pode durar mais uns anos. Com uma coragem excepcional dos exportadores. Com a mudança de atitude europeia relativamente aos países do Sul, aos devedores e aos mais atrasados. Não estava escrito no céu, era possível não aproveitar os faustos. O mérito do governo é o de saber estar no sítio certo. E o do equilíbrio entre compaixão e austeridade.

Costa é muito hábil. Sim. Habilidoso. Sim, também. Sabe tudo de manhas e artimanhas. Sabe. É pragmático. É. Trata sem dogmas e resolve sem ideologia. Sim. Não perde tempo com o acessório. Não. O importante é manter-se. Sim. Tem enorme capacidade de negociar tudo. Tem. Pode durar mais do que se pensa. Pode. Tem sorte. Muita. Está a ser ajudado pelo mundo e pela Europa. Sim. Todos ajudam, a economia, a reacção a Trump, a derrota de Hollande, o receio de Merkel e as ameaças de Putin. Os comunistas estão por tudo. Estão. Sabem que é a sua última oportunidade. Sabem.

Vivemos aquele momento estranho que vem descrito nas teorias dos jogos. O PS quer ganhar e dispensar os dois outros. Os dois outros querem mostrar que são indispensáveis, mas desejam impedir que o PS ganhe com maioria absoluta. Se o PS ganhar, os dois outros podem ir para a rua. Ou ficar cortesmente lá, sem uso nem força. Ninguém sabe, nem PS nem os dois outros, quem bate com a porta, quem deve sair a correr ou ser corrido. Quem fica com as culpas e quem ganha. Quem ganha a perder ou perde a ganhar. Mas, até 2020, alguém vai perder… Esperemos que não sejam os Portugueses.

Há um clima favorável. Que é sempre o mais importante. É o bom clima que gera a confiança. Para isso, contribuíram os Portugueses e os estrangeiros, os empresários e os trabalhadores, a economia europeia e as autoridades portuguesas, a União Europeia e o governo português. É possível, perfeitamente possível, que tenhamos iniciado um período de retoma, de recuperação económica e de crescimento, a par de outros vividos aquando das crises do petróleo, da crise da revolução e das crises dos dois resgates dos anos setenta e oitenta. É possível. Depois do que sofreu, entristeceu e empobreceu durante quase vinte anos, é essencial este pobre país reconciliar-se consigo próprio. Seria ainda mais importante que, após três ou quatro anos de recuperação e restauro de forças, tivéssemos alguma esperança em que tudo não recomeçaria depois, mais uma vez…

Esta é uma prece ao senhor dos Aflitos. Uma súplica para que os nossos dirigentes políticos não estraguem tudo outra vez, para que não abram desalmadamente os cofres, para que não voltem a meter ao bolso, para que não gastem o que não têm, para que não construam túneis e viadutos, para que não desperdicem como novos-ricos, para que não façam mais parcerias ruinosas em que os privados ficam com os lucros e o público com o prejuízo, para que não autorizem swaps, para que não voltem a recrutar dezenas de milhares de funcionários públicos, para que não aumentem salários acima do razoável, para que não voltem a bater nos pobres, para que não dêem aos ricos o que eles não precisam, para que não continuem a pensar que se pode viver eternamente com dívidas, para que parem de pensar que os credores têm a obrigação de socorrer os devedores, para que dêem espaço e liberdade aos empresários e para que não voltem a viver como se não tivessem filhos.

DN, 21 de Maio de 2017

Sem Emenda - As Minhas Fotografias

Duas freirinhas chinesas repousam-se na igreja do Monte das Oliveiras, em Jerusalém – É uma espécie de avenida de acesso à Basílica. Nas paredes, painéis de azulejos em todas as línguas celebram o local, transcrevem o “Pai-nosso” e convidam à oração. É um local impressionante. O ambiente é de paz. E de alguma excitação: fica-se com a impressão de que os cristãos do mundo inteiro viveram sempre com a ideia de, um dia, irem a Jerusalém e aos chamados “locais sagrados”. Poucas horas de passeio são suficientes para ver e ouvir dezenas ou mesmo centenas de povos, trajes e línguas diferentes. Em todos os sítios visitados, Sepulcro, Natividade, S. João, Calvário, “Pater Noster”, Cenáculo e Túmulo do Rei David, era a mesma festa. Ao lado de ruidosos americanos e pesados russos, um grupo de mulheres etíopes vestidas de branco cantava pelas ruas e anunciava que as etíopes eram cristãs há mais de mil anos… Já estas freirinhas chinesas pareciam mais com vontade de descansar.

DN, 21 de Maio de 2017

segunda-feira, 15 de maio de 2017

Sem emenda - Acudam! Património à venda!

O chamado Novo Banco herdou, do defunto Banco Espírito Santo, algumas colecções de arte ou patrimoniais que merecem atenção. São várias. A de “Artes decorativas”, no Palácio Azurara, anexo à Fundação Ricardo Espírito Santo: pintura, azulejos, têxteis, prata, móveis, louça e ourivesaria. Parece haver, no acervo de pintura renascentista, barroca, clássica e moderna, algumas obras de real interesse, entre quadros de Josefa de Óbidos e, mais recentes, de Vieira da Silva e Paula Rego.

A colecção de numismática, ao que dizem a melhor de Portugal e uma das grandes colecções europeias, com mais de 15.000 exemplares de moedas de todos os tempos, romanas e gregas, ibéricas anteriores à nacionalidade e portuguesas desde Afonso Henriques.

Uma colecção de fotografia contemporânea, sobretudo internacional, mas com alguns artistas portugueses importantes, faz parte deste espólio. Terá cerca de 1.000 obras de considerável valor. Talvez mais orientada para o valor monetário do que para a qualidade estética, mas são gostos que se discutem. A colecção tem inegável valor patrimonial. Em Portugal, país pobre em fotografia internacional, esta colecção faz falta.

Uma “Biblioteca de estudos humanísticos”, como o seu autor gostava de a designar, organizada durante toda a sua vida pelo professor e académico José Vitorino de Pina Martins. Compreende aquela cerca de 1.000 obras raras de excepcional valor, assim como perto de 8.000 volumes de consulta relativos a estudos clássicos e humanistas. Entre os autores das obras raras, verdadeiramente fundadoras da cultura europeia e exemplos maiores do humanismo renascentista, contam-se Erasmo, Maquiavel, Pico della Mirandola, Newton, Galileu, Montaigne, Thomas More, Dante, Boccacio, Petrarca, Descartes, Camões, Sá de Miranda e outras figuras que deram extraordinário contributo para a história do pensamento e da ciência. São incunábulos e valiosas edições quinhentistas e seiscentistas, muitas delas únicas em Portugal e raras na Europa. Como em todas as colecções, há obras e peças de valor muito diferente. Mas alguns destes volumes são de excepcional qualidade e de valor mundial. São autênticos tesouros.

Parece que ninguém é favorável a que se vendam estas colecções ou que se deixem ficar todas num banco, em vias de estranha privatização. Consta que já existem projectos de resolução parlamentar da autoria dos partidos de apoio ao governo. Dizem que o Ministro da Cultura já se exprimiu sobre o assunto. Mas nada disso deixa uma pessoa tranquila. Antes de saber que foram tomadas medidas definitivas tendentes a preservar estes pequenos tesouros, não se acredita nesta espécie de rumores. Casos recentes, que envolveram a exportação ou a venda de obras-primas, deixaram crescer as dúvidas.

Qual é a dificuldade em arrolar, classificar, expropriar (legalmente, claro!) e nacionalizar (a preços justos, com certeza!) tão importantes peças de património, únicas em Portugal? Por que razão é tão difícil o Estado português, que já nacionalizou tudo o que se imagine e cresça sob o sol, incluir estas colecções no bem comum? Um Estado que já expropriou quiosques e herdades, quintas e barbearias, além de bancos, petróleos, cimentos, seguros e electricidade, não consegue arranjar uns euros, alguma legitimidade, um argumento e um fundamento para enriquecer o património e não deixar ir embora obras primas que nunca mais veremos? Não haverá entidades privadas que queiram, sem disso fazer campanha de propaganda, oferecer ao povo estas tão interessantes colecções?

O Estado português, o do corporativismo, o do socialismo, o do comunismo e o do capitalismo, tem tido dificuldades em agir, neste domínio da cultura e do património, com isenção e inteligência. Ora nacionaliza e expropria sem critério. Ora deixa correr sem rigor. Ora garante que não tem recursos financeiros e que “quem não tem dinheiro não tem vícios”, ora paga tudo o que pareça ser chique e dê votos ou crie clientelas. Estas colecções oferecem uma oportunidade para o Estado, liberal e zeloso do bem comum, agir sem preconceitos.
DN, 14 de Maio de 2017